Milícia e tráfico disputam 8km da Orla do Rio de Janeiro

Um naco de oito quilômetros da orla do Rio, na Zona Oeste, é alvo de uma disputa sangrenta entre milícia e duas facções do tráfico. Do Posto 12, no Recreio, até Grumari, passando pelas praias do Pontal e da Macumba e pela Prainha, a disputa dos grupos criminosos vem causando mortes, inclusive de inocentes.

Passava de 1h de sexta-feira quando o vigilante e ex-paraquedista do Exército Leandro Leite de Carvalho, de 29 anos, estacionou o carro na Praia do Recreio, em frente à Pedra do Pontal. Leandro e três amigos desembarcaram animados do veículo. Tinham saído de Realengo, onde moravam, para passar a madrugada do último dia 7 de abril — no meio do feriado de Semana Santa — curtindo um luau na areia. Apenas duas horas depois, a empolgação daria lugar ao terror: o vigilante foi abordado por homens armados, que o executaram com um tiro na cabeça e, em seguida, colocaram seu corpo sobre uma prancha de surfe e o lançaram ao mar. Sua família só conseguiu enterrá-lo duas semanas depois, quando o cadáver foi encontrado por bombeiros na Restinga de Marambaia.

Leandro foi vítima inocente da guerra sangrenta entre a maior milícia do Rio e duas facções do tráfico por um naco de 8 quilômetros da orla do Rio. Para os milicianos, oriundos da favela vizinha do Terreirão e subordinados a Luis Antônio da Silva Braga, o Zinho, o que está em jogo é o controle do mercado milionário da extorsão na região: ali, tudo é taxado, dos estacionamentos na orla aos ambulantes que trabalham na areia. Já os dois grupos de traficantes desejam explorar a venda de drogas na praia e nas festas realizadas na orla, além do “delivery” de maconha e cocaína nos arredores. Em meio ao conflito, Leandro saiu de casa para se divertir e foi confundido com um paramilitar rival por um dos grupos de traficantes que disputa a região.

— Aquela região está largada. Depois da morte do meu irmão, não fizeram nada. Nem a polícia, nem o governo se mexeu. Milhares de pessoas frequentam aquele ponto, e quem manda lá ainda são os bandidos. Parece até que não se importam com a vida das pessoas. Meu irmão estava passando por um momento feliz, tinha saído do Exército, queria entrar para a polícia, tinha um filho de 3 anos. Foi uma covardia — diz o cantor Rafael Leite de Assis, de 34 anos, irmão de Leandro.

A investigação do homicídio, baseada em depoimentos de testemunhas, culminou na denúncia de quatro traficantes. André José da Silva Filho, o Baianinho — apontado como autor dos disparos —, e Pablo Câmara da Silva, o PL, são réus pelo homicídio. Já Cristian Gomes de Oliveira, o Lobinho, e Jonathan Souza da Costa, o Gordinho, respondem pelo crime de tráfico.

Milhares de pessoas frequentam aquele ponto, e quem manda lá ainda são os bandidos. Parece até que não se importam com a vida das pessoas — Rafael Leite de Assis, irmão de Leandro Carvalho

Segundo depoimentos prestados à Delegacia de Homicídios (DH), Leandro teria estranhado a movimentação e os olhares dos criminosos em sua direção. Por isso, durante a madrugada, pegou sua arma — ele tinha porte autorizado pela PF, por conta da profissão — no carro. Foi nesse ponto que os traficantes o abordaram. Depois da execução, segundo um dos relatos, os criminosos ainda comemoraram o crime com tiros para o alto, gritando o nome da facção, enquanto jogavam o corpo no mar. Hoje, só Baianinho está preso. Após ser capturado, ele admitiu à polícia que acreditava que Leandro era miliciano.

 

Escalada na violência desde o início do ano

A atuação de paramilitares e traficantes naquele trecho já existe há pelo menos uma década, mas o conflito escalou ao longo deste ano — influenciado pela guerra interna na maior milícia do Rio e pelo avanço da maior facção do tráfico no estado sobre áreas dos paramilitares. Até 2021, a milícia do Terreirão, então chefiada por Wellington da Silva Braga, o Ecko, irmão de Zinho, convivia pacificamente com um grupo de traficantes oriundos da Vila do João, no Complexo da Maré, que se instalou na praia e começou a vender maconha e cocaína para os banhistas. Entre os integrantes do bando estavam os criminosos apontados como autores do homicídio do vigilante Leandro.

Como os dois grupos eram aliados, a orla passou a ser dividida: drogas eram comercializadas na areia enquanto os milicianos espalharam seus tentáculos pelo calçadão. Do Recreio até a Praia de Grumari, por exemplo, a milícia impôs aos flanelinhas uma taxa semanal de R$ 150. Para pagá-la, os guardadores de carros chegam a cobrar dos banhistas R$ 50 por uma vaga, valor muito superior aos R$ 2 tabelados pela prefeitura. Os flanelinhas se comunicam por rádio para fugir da fiscalização. Os paramilitares chegaram a construir um estacionamento irregular com 80 vagas na Praia da Macumba, na Área de Proteção Ambiental (APA) de Grumari, e cobravam R$ 30 dos motoristas. Em 2021, o estabelecimento foi fechado três vezes pela Secretaria municipal de Meio Ambiente no intervalo de um ano — e voltava a funcionar normalmente depois das operações.

Após a morte de Ecko durante uma operação policial em 2021, a situação mudou. Apenas duas semanas depois, o Terreirão foi invadido, e três pessoas morreram no ataque a um bar. Disputas internas racharam a milícia, e a favela passou a ser disputada por duas quadrilhas de paramilitares — assim como outras localidades na Zona Oeste e na Baixada Fluminense. No Terreirão, Zinho, sucessor de Ecko, prevaleceu. A relação com os traficantes que atuavam na praia, no entanto, mudou — sobretudo pela chegada, mais recente, de um novo ator à região: a maior facção do tráfico do Rio, rival do grupo que antes dividia a área com a milícia.

 

Território dividido

Em agosto, agentes dos 31º BPM (Barra da Tijuca) apreenderam 300 sacolés de cocaína e prenderam três traficantes no Terreirão — algo inimaginável há alguns anos, já que a milícia impedia bocas de fumo na favela. Os criminosos eram oriundos da Cidade de Deus, e a embalagem da droga tinha as iniciais do novo grupo. Desde então, a polícia investiga se Zinho fechou um pacto de não-agressão com a facção para conseguir manter seu domínio na região. Os moradores ainda não se acostumaram com a nova cena criminal:

— Na mesma rua, tem uma boca de fumo de um lado e um bonde de milicianos fazendo a cobrança de outro. Um grupo não mexe com o outro. Não houve invasão, os traficantes só chegaram aqui e passaram a vender drogas — conta um comerciante.

Além do Terreirão, também há traficantes em comunidades de Vargem Pequena e Vargem Grande que eram reduto de Zinho. Investigadores acreditam que a aproximação entre os antigos rivais foi mediada por Philip Motta Pereira, o Lesk, ex-miliciano da Gardênia Azul que se aliou à facção no final de 2022, mas manteve contato estreito com Zinho e seus comparsas. Lesk foi um dos quatro suspeitos mortos num tribunal do tráfico depois de participarem do ataque que culminou com a morte de três médicos em outro ponto da orla, na Barra da Tijuca. Assim como no caso do vigilante Leandro, uma das vítimas foi confundida com um miliciano, Taillon Barbosa, de Rio das Pedras, que seria o verdadeiro alvo do ataque.

Na mesma rua, tem uma boca de fumo de um lado e um bonde de milicianos fazendo a cobrança de outro — Comerciante do Terreirão

A chegada da facção ao Terreirão gerou reação imediata do grupo que atua na praia. Em 19 de agosto, criminosos mataram um traficante na comunidade. Dias depois, um bando armado passou atirando pela orla na altura do Posto 11. Em 14 de setembro, a Pedra do Pontal amanheceu com uma pichação ameaçadora: a frase “Atenção morador, o bicho vai pegar”, acompanhada pelas iniciais da facção que divide o Terreirão com a milícia. A Comlurb precisou de dois dias e o auxílio de um alpinista para fazer a limpeza do local.

A guerra no cartão-postal foi determinante para que a Barra e o Recreio batessem um recorde histórico de violência: de janeiro a setembro deste ano, os bairros registraram 88 assassinatos, a maior quantidade na região em 20 anos.

 

Créditos: O Globo.

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Fonte: TBN


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