Governo Lula despreza a língua portuguesa no ‘Enem dos concursos’

O governo Luiz Inácio Lula da Silva voltou a demonstrar desprezo com a língua portuguesa. Dessa vez, decidiu não aplicar questões de português para cargos de nível superior no Concurso Público Nacional Unificado (CPNU), considerado o “Enem dos concursos”. Ao todo, serão oferecidas 6,6 mil vagas para 21 órgãos federais. As provas estavam agendadas para acontecer neste domingo, 5. Contudo, a escalada de enchentes no Rio Grande do Sul provocou o adiamento da prova.

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Os candidatos aprovados ganharão emprego em diferentes ministérios. Cada um deles especifica as categorias de profissões que os órgãos federais precisam. Apenas um desses editais vai exigir avaliação objetiva de língua portuguesa, cujas formações exigidas são apenas de cursos técnicos, e não superior.

Cnu Orgaos Carreiras Vagas by Revista Oeste

O que diz o Ministerio da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos sobre o ‘Enem dos concursos’

De acordo com a pasta, o concurso tem o objetivo de “desenvolver políticas de gestão de pessoas e de desenvolvimento de competências transversais e de liderança para o quadro de servidores da administração pública deferal”. O ministério também diz que deseja “promover igualdade de oportunidade de acesso aos cargos públicos efetivos”. As provas vão ser aplicadas em 180 cidades do país, em todas as regiões. O governo diz que espera “democratizar o acesso aos cargos públicos”.

Oeste entrou em contato com o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), responsável pela criação do concurso, e perguntou sobre a decisão de não aplicar as questões de língua portuguesa. O governo alega que “o português será cobrado por meio da interpretação de texto e da escrita”.

Ou seja, o candidato que almeja entrar no funcionalismo público deverá mostrar seus conhecimentos da língua por meio desses métodos. Não será necessário responder a questões de gramática e ortografia. O candidato não vai precisar mostrar sua capacidade de responder perguntas sobre “inferência, objeto direto e indireto, conjugação verbal e pontuação”.

Especialistas criticam decisão do governo Lula

Lara Brenner Queiroz é professora de língua portuguesa e advogada licenciada. Segundo ela, avaliar o conhecimento de gramática por meio da leitura não é suficiente. “A redação tem poucas linhas, insuficientes para aferir o domínio linguístico do candidato”, afirmou à Oeste. “Além do quê, ali também não é possível aferir se o candidato acertou certas construções por sorte ou se ele de fato conhece a estrutura de nossa norma-padrão.”

Lara ainda disse que “é por meio da prova objetiva que se avalia se o candidato compreende e interpreta um texto, domina a norma-padrão (que, aliás, deve ser usada no exercício de cargos públicos) e sabe pensar cientificamente sua própria língua”. 

“Funcionários públicos trabalham com gramática normativa; são cargos técnicos que demandam profissionais altamente qualificados”, afirmou Lara. “É evidente que precisam conhecer com profundidade a língua e suas estruturas a ponto de saber, por exemplo, quais mecanismos empregar para reescrever trechos confusos.” 

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Regina Camargos, coordenadora da Comissão de Governança do CPNU, foi interpelada sobre a não aplicação dessas questões. Ela argumentou ao jornal Folha de S.Paulo que “não se mede conhecimento de língua portuguesa por decoreba de regras gramaticais”. “Não queremos decoreba, queremos alguém que pense, que raciocine, que seja capaz de raciocínios complexos”, disse a servidora.

Lara afirma que o conhecimento intuitivo tampouco é suficiente. Ela diz que “um médico precisa conhecer profundamente a anatomia humana para operar; um engenheiro precisa conhecer profundamente as teorias de cálculo para construir; um dentista precisa conhecer profundamente a construção bucal para intervir; um advogado precisa conhecer profundamente as leis para atuar bem”.

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“Ademais, não se trata apenas de decorar, mas de usar na prática o conhecimento memorizado e bem compreendido, construindo, assim, textos claros, precisos e gramaticalmente corretos”, afirmou. Ainda segundo a professora, se a coordenadora de Governança do CNPU quer “candidatos capazes de ‘raciocínios complexos’, deveríamos começar escolhendo quem melhor sabe raciocinar a norma-padrão do próprio idioma”.

Segundo Fernando Pestana, professor de língua portuguesa e mestre em linguística pela Universidade do Porto, as palavras de Regina ferem a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que preza pelo ensino da disciplina no ensino médio. O professor afirmou a Oeste que “não faz o menor sentido atribuir ao ensino dos professores uma metodologia que não reflete a proposta da própria BNCC, cujo intento é justamente estimular o pensamento e o raciocínio”. “Logo, usar o argumento de ‘decorebas gramaticais’ para justificar a ausência da cobrança dessas regras [nas provas de ensino superior] é equivocado e irresponsável, pois essa nunca foi a proposta do BNCC”, disse Pestana.

Oeste também conversou com o professor Carlos André. Ele é advogado, professor e membro da Frente Nacional pela Língua Portuguesa. De acordo com ele, isso é um perigo porque trata-se do “maior concurso público da história do país”. Segundo Carlos André, o governo, ao não aplicar as questões, comete três erros graves. O primeiro é que vai contribuir para que o Brasil continue em posições baixas no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa).

Entre 2018 e 2022, o Brasil apresentou um desempenho abaixo das médias registradas pelos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Os dados, apresentados em dezembro de 2023, mostram que o Brasil ocupa a posição 52º em leitura, atrás de países como Costa Rica, México e Uruguai. Com isso, o país apresenta um déficit extraordinário de leitura e interpretação de texto. Para o professor, a avaliação proposta pelo governo no CPNU não é suficiente, porque, para se ler bem, é preciso “saber os aspectos fundamentais dos conhecimentos linguísticos”.

“Quando aprendo um gênero textual, estou estudando a língua portuguesa”, afirma o professor. “As regras gramaticais são fundamentais, porque elas indicam prestígio social, ou a capacidade de adequar a língua em determinados contextos. Trata-se de uma habilidade complexa, mas isso faz muita diferença na carreira de qualquer ser humano, seja como servidor público ou não. Com isso, o governo demonstra total desconhecimento da realidade do país.”

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Outro problema que o Brasil enfrenta, além do baixo desempenho no Pisa, é o Anafalbetismo Funcional. De acordo com os dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), três em cada dez brasileiros na faixa de 15 a 64 anos apresentam limitações para fazer uso da leitura, da escrita e da matemática em atividades cotidianas.

A pesquisa mostrou diferenças significativas nas taxas de analfabetismo funcional entre jovens e pessoas mais velhas. Na população entre 15 e 24 anos, 12% são considerados analfabetos funcionais. No caso dos que se situam na faixa entre 50 e 64 anos, o valor chega a 53%. O segundo erro, analisado pelo professor Carlos, é que a decisão causa “um total desprestígio aos professores da língua portuguesa”. “Os professores de português já são desestimulados no país, com isso, serão ainda mais desvalorizados”, afirma.

O terceiro erro é o desprezo por parte do governo à Constituição Federal, que, no seu artigo 13º, diz que a língua portuguesa é o símbolo da nação. “Não é nacionalismo, é questão cultural, mesmo”, analisa Carlos. “A Constituição Federal prevê isso para que nos fortalecemos culturalmente. Somos o Brasil e a nossa língua precisa ser valorizada. O governo, portanto, numa tacada só, desrespeita os dados, a educação e a cultura do nosso país.” 

Ao ser interpelado sobre as consequências da não aplicação das questões de língua portuguesa no maior concurso no país, o professor afirma que “teremos profissionais que não dominarão concordância, regência e pontuação”. De acordo com ele, para que uma pessoa escreva, é preciso, primeiro, dominar toda a estrutura linguística. “As consequências são: as pessoas não terão proficiência na língua”, concluiu.

O ‘Enem dos concursos’ perde credibilidade

A Frente Nacional pela Língua Portuguesa publicou uma carta aberta em que critica a decisão do governo Lula. O documento alerta para “a dramática situação de performance dos brasileiros em leitura e em gramática”. 

“A exclusão da disciplina língua portuguesa de alguns editais do CNU representa uma incoerência de política governamental”, diz trecho da nota. “Isso desconsidera a grave situação de analfabetismo funcional de nossa população: daquela que possui graduação, inclusive.”

A carta ainda diz que “a ausência de incentivo aos temas ligados à brasilidade nas escolas brasileiras, tem-se, cada vez mais, a influência negativa de culturas estrangeiras em nosso povo. O que, de certa forma, contraria o sentido da língua como um símbolo da nação, como prevê o art. 13 da Constituição Federal”. De acordo com o órgão, “a ausência da disciplina língua portuguesa no CPNU é catalisadora de desestímulo, ainda maior, ao cultivo da língua nacional”. 

O documento ainda diz que o desprezo por parte do governo “é um retrocesso grave”, que “não se limita apenas à importância da proficiência comunicativa, mas também à necessidade de compreensão profunda da população sobre a riqueza linguística como um elemento que nos torna um só povo”.

Carta Aberta Frente Naciona… by Revista Oeste

A Academia Goiana de Letras também se manifestou a respeito do assunto. O órgão afirma que “o Estado brasileiro não pode se escusar, sob qualquer pretexto, de zelar pelo uso universal da Língua Portuguesa”. 

“A Academia vem se juntar a este movimento de defesa e pondera às autoridades governamentais sobre a necessidade de incluir a disciplina língua portuguesa neste, que é o mais importante certame de seleção de trabalhadores para os quadros da administração pública no país”, afirma o órgão, em nota. “Ao lado do conhecimento específico de cada área do certame, a inclusão da disciplina reafirma nosso compromisso com a valorização do idioma e o respeito a um dos pilares de nossa identidade cultural.”

A Ordem dos Advogados do Brasil — Secção de Goiás (OAB-GO) manifestou apoio à inclusão da língua portuguesa no concurso. O presidente da OAB-GO, Rafael Lara, ressaltou a importância da defesa da língua portuguesa no certame. Segundo Rafael, a OAB tem por finalidade a defesa da Constituição e o aperfeiçoamento da cultura da República.

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“A OAB deve liderar, por meio de diálogo com as autoridades competentes e por meio de ações, estratégias que visem a corrigir esse equívoco de política pública”, disse Rafael, em reunião com a Frente Nacional pela Língua Portuguesa. “A exclusão da disciplina é um retrocesso grave, que não se limita apenas à importância da necessidade de compreensão profunda da população sobre a riqueza linguística como um elemento que nos torna um só povo, mas também pela proficiência comunicativa do cidadão brasileiro.”

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Fonte: Revista Oeste


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