‘Pacto Brutal’ relembra o fracasso do sistema da Justiça criminal brasileira

Na noite de 28 de dezembro de 1992, o corpo da atriz Daniella Perez, 22 anos, foi encontrado num matagal na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, perfurado por 18 estocadas realizadas com um punhal que feriram seus pulmões e o coração.

O relato de uma testemunha levou a polícia a Guilherme de Pádua, colega de elenco da vítima, e à mulher dele, Paula Thomaz. Cada um dos dois foi condenado por homicídio qualificado a uma pena de quase 20 anos de prisão, depois do júri popular acatar a tese da acusação de que o casal planejou o crime — Paula Thomaz, por ciúmes do marido; Guilherme de Pádua, por vingança contra a autora da novela, Gloria Perez, ao perceber que seu personagem perdia espaço na trama.

O crime que chocou o país é rememorado na série documental Pacto Brutal: O assassinato de Daniella Perez, disponível na plataforma de streaming HBO Max, em cinco episódios, desde o último dia 21. O episódio trágico marcou a virada do ano de 1992: o assassinato de uma personagem da novela das oito da rede Globo, pelo seu colega de cena. Para tornar o caso ainda mais insólito, ambos trabalhavam em uma trama escrita justamente pela mãe da vítima. Em uma época em que teledramaturgia ditava regras e era quase onipresente nos televisores brasileiros, a realidade brutal superou a ficção.

A versão da acusação, sem participação dos condenados

O seriado documental opta por não reconstituir cenas do assassinato, além de não contemplar a participação dos condenados pelo crime e de suas defesas. Os diretores da série explicam porque não trouxeram à tona as versões dos condenados. “Foi uma decisão nossa, como documentaristas”, diz Guto Barra, um dos diretores da obra, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo. “Eles tiveram bastante espaço na imprensa para contar versões, que não foram comprovadas. E, ao contrário do jornalismo tradicional, a gente acha que no documentário não precisaríamos ir para esse outro lado.”

A obra se baseia no processo e na versão da acusação que levou à condenação dos réus, conduzida durante os episódios pelo depoimento de Gloria Perez. Os relatos da mãe da atriz, de atores, advogados e promotores que participaram da condução do caso indicam que os condenados premeditaram o assassinato. De acordo com a versão apresentada, Guilherme e Paula mataram Daniella seguindo rituais ocultistas, evidenciados pelo uso de um punhal para matar a vítima, a posição do corpo em que ela foi encontrada, as estocadas direcionadas ao coração, a subtração de uma mecha de cabelo, o fato de o crime ter ocorrido na última noite de lua cheia, entre outros fatores.

A luta pela Justiça

A série pode ser analisada sob diferentes aspectos, mas um ponto que merece ser destacado foi a luta encampada por Gloria Perez para alterar a Lei dos Crimes Hediondos. A batalha da novelista representou a indignação de milhares de mães brasileiras que perdem seus filhos para o crime e que se deparam com uma Justiça frouxa, lenta e permissiva com bandidos.

Quando foi cometido, o crime de homicídio qualificado não era considerado hediondo. Nos meses seguintes, Gloria Perez juntou 1,3 milhão de assinaturas na tentativa de incluir homicídio qualificado na lista de crimes hediondos. Ela conseguiu. “Em qualquer democracia ocidental os assassinos teriam sido condenados à morte ou à prisão perpétua”, disse Roberto Motta, engenheiro, ex-consultor do Banco Mundial e ex-Secretário de Estado do Conselho de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, em uma publicação recente nas redes sociais, sobre o assassinato de Daniela Perez. “Mas o Brasil decidiu ser fofo com homicidas”.

A luta de Gloria Perez tinha um objetivo: endurecer a punição de criminosos condenados por homicídios qualificados, como o praticado pelos assassinos de sua filha. Pela lei, os condenados por crimes considerados hediondos recebem um tratamento mais severo pela Justiça.

Por exemplo, eles devem cumprir pena inicialmente em regime fechado. Também deixam de ter direito a pagamento de fiança, anistia, graça e indulto. A progressão de regime, quando o preso pode passar de um regime mais rigoroso para outro mais leve, é possível após o cumprimento de dois terços da pena, no caso de réu primário, e de três quintos, se reincidente. A regra geral para outros crimes prevê que essa mudança de regime pode ser realizada após o condenado ter completado um sexto da pena. Outra medida prevista nesta lei é que a liberdade condicional só será concedida se o condenado, não reincidente, cumprir mais de dois terços da pena. Como regra geral, o juiz pode conceder o livramento condicional desde que o condenado, não reincidente, tenha cumprido um terço da pena e desde que tenha bons antecedentes.

Retrocesso legal

Aqui, um parêntese. Quando foi aprovada, em 1990, a Lei dos Crimes Hediondos previa que a pena deveria ser cumprida integralmente em regime fechado, sem possibilidade de progressão de regime. No entanto, em 2006, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) mudaram a posição sobre o assunto. O STF passou a considerar inconstitucional a proibição de progressão de regime para os criminosos hediondos. Votaram pela inconstitucionalidade da proibição da progressão de regime o relator do caso, Marco Aurélio Mello, acompanhado dos ministros Carlos Ayres Britto, Eros Grau, Sepúlveda Pertence, Cezar Peluso e Gilmar Mendes. Entre outros pontos, os ministros argumentaram que a proibição da progressão de regime fere o princípio da individualização da pena. “O cumprimento da pena em regime integral, por ser cruel e desumano, importa violação a esses preceitos constitucionais”, alegou Grau.

Detalhe: a decisão do STF foi proferida no julgamento de uma ação de habeas corpus em favor de O. C., condenado por molestar sexualmente três crianças, entre 6 e 8 anos.

Os dois condenados pela morte de Daniella Perez cumpriram apenas 6 anos dos 19 anos a que foram condenados em regime fechado. Hoje, Guilherme de Pádua é pastor da Igreja Batista, em Belo Horizonte, e se casou com a maquiadora Juliana Lacerda em 2017. Paula Thomaz formou-se em Direito, casou novamente, usa outro nome e não fala com a imprensa.

Como lembra Motta em seu livro A construção da Maldade, crime é questão de escolha. “Precisamos de sentenças duras, aplicadas com rapidez e consistência. A ideologia precisa ficar de fora dos tribunais”, escreve.

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Fonte: Revista Oeste


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