O golpe de Estado sem armas? A morte de Cleriston e o direito à defesa

Um assunto que realmente me sensibilizou foi a morte em 20de novembro desse pai de família, com dois filhos, casado, que estava preso naPampulha e sofria de diabetes e de hipertensão, Cleriston Pereira da Cunha. Aprópria Procuradoria Geral da República tinha pedido para dar prisão domiciliarpara que ele pudesse ser tratado. O pedido estava na Suprema Corte desde o mêsde setembro.

Ele continuou preso e morreu. Um homem, simples, sem ficha nenhuma, segundo os jornais, pai de família, com dois filhos, que participou de um quebra-quebra, que era uma mera manifestação política, e que, evidentemente, não era golpe de Estado porque não havia armas. Integro a Academia Paulista de História, sempre gostei de história. Escrevi livros de história. Nunca vi na história do mundo, um golpe de Estado, sem armas. Aquele grupo de baderneiros que transformaram uma manifestação política em um quebra-quebra, jamais poderia ter dado um golpe de Estado. Jamais.

A morte de Cleriston me sensibilizou como advogado, me sensibilizou como cidadão brasileiro, me sensibilizou como pai de família.

Pergunto aos 207 milhões de brasileiros: quando no mundohouve um golpe de Estado sem armas? O Brasil tem um exército de 220 milsoldados; a Marinha, 55 mil; a Aeronáutica, 55 mil; policiais militares são,mais ou menos, 600 mil. E o grupo que estava lá não tinha nenhuma arma. Épossível derrubar um governo eleito pelo povo sem armas? Evidente que não era umgolpe de Estado.

Foi um protesto político feito por um grupo, que, depois, setransformou numa baderna. Eles deveriam ter a mesma punição que tiveram aquelesbaderneiros do PT e do MST, que invadiram o Congresso Nacional, na época em queera presidente da República Michel Temer. Eles foram tratados como baderneiros.Mas nunca foram tratados como golpistas.

Tenho a sensação de que venderam uma ideia de que grupo desarmado poderia dar um golpe de Estado. Prenderam pessoas sem nenhum passado criminal, com folha corrida criminal em branco, e os deixaram presos. Estão aplicando penas de 17 anos. E um deles, pai de família, com mulher e dois filhos, preso com problemas de saúde, com a Procuradoria Geral da República pedindo ao Supremo Tribunal Federal pela sua libertação desde setembro, transformando-a em prisão domiciliar, morre no mês de novembro. Morre de ataque cardíaco, e isso é considerado natural: nesse caso, os direitos humanos pouco importam.

Se os advogados não puderem mais falar diretamente com os ministros, perde-se a razão da advocacia, da sustentação oral.

A meu ver, hoje nós temos um problema no direito que meentristece muito como advogado. Sou advogado há 65 anos. O direito do advogadode exercer a sua profissão está sendo reduzido. Quando eu comecei a advogar, sustentavaperante o Supremo Tribunal Federal e era recebido pelos próprios ministros emBrasília em 1961, 1962, 1963. Eles estavam recém-instalados em Brasília. Tratavam-mecom muito respeito. Aliomar Baleeiro, Hahnemann Guimarães, Pedro Chaves.

Sendo um advogado, enfim, recém-formado, cuja carreira universitária ia começar só no ano de 1964, era ouvido nas sustentações orais pelos ministros. Hoje, as sessões são virtuais para a condenação de pessoas a 17 anos de prisão. Sessões virtuais em que o advogado não olha os olhos dos ministros, porque manda a sustentação oral através de um vídeo, na esperança de que venha a ser visto e ouvido. Coisa que eu entendo que não deve acontecer. Um ministro, com todas as preocupações, com as palestras que tem que dar fora, as viagens que tem que fazer, dificilmente terá tempo de ouvir. Vocês acham que recebendo essas sustentações orais, eles vão sentar numa mesa e ficar ouvindo? É possível que façam. Mas muitos advogados têm a impressão de que não. E as próprias declarações são intrigantes: “Não, o que está escrito não precisa ser dito”.

 

Há um direito funcional com a sustentação oral. E agora,inclusive, um regimento interno mudando esse direito. O Supremo dizendo quequando uma sessão virtual é transformada em sessão plenária, o advogado quemandou a sustentação oral não poderá fazer uma nova sustentação oral perante oplenário. Ora, os advogados que mandaram virtualmente a sustentação são aquelesadvogados mais importantes na causa. Se não puderem mais falar diretamente comos ministros, perde-se a razão da advocacia, da sustentação oral. Quantas vezeseu, no momento em que sustentava perante o Supremo, mudava a minha orientaçãode acordo com a reação que ia percebendo dos ministros da Suprema Corte: aíestá a razão da advocacia, aí está a razão de convencer todos os ministros, nomomento em que se apresentam os principais argumentos. Isso praticamente estásendo abolido.

A Ordem dos Advogados do Brasil tem protestado de uma formatímida na defesa do direito à advocacia. E a Ordem Seccional de São Paulo, infelizmente,nós não estamos vendo integrada a esta luta, das mais importantes. Quando fuipresidente do Instituto de Advogados, de São Paulo, de 1985 a 1986, junto comnossos presidentes, do Conselho Federal da Ordem e do Conselho Seccional,defendíamos o direito do advogado − importantíssimo para a administração dajustiça − poder exercer o direito do cidadão. Nossa credibilidade era maior,porque o advogado representa o cidadão que está sendo condenado, ou que estásendo acusado. Nós tínhamos a respeitabilidade e a coragem de enfrentar.

A relação de importância da magistratura é igual – sempre disse isso nas minhas aulas desde 1964 – ao advogado e ao membro do Ministério Público. É que sem eles não há justiça. Não pode haver justiça sem advogado, não pode haver justiça sem Ministério Público, não pode haver Ministério Público e Advocacia sem magistrado. Os três são igualmente importantes para a administração da justiça. Por isso estão no título IV do capítulo do Poder Judiciário e das funções essenciais à administração da justiça.

Hoje, nós estamos tendo um enfraquecimento da advocacia enão se tem tido a coragem necessária daqueles órgãos que representam osadvogados de defender, à exaustão, o direito do advogado de exercer o direitomaior num processo judicial, de que, no ponto final do julgamento, possasustentar oralmente, sendo todos os ministros, todos os desembargadoresobrigados a ouvir aquele que está na defesa do cidadão.

É o exercício maior da cidadania, aqueles que defendem oEstado de Direito sem ganhar absolutamente nada, porque os membros doMinistério Público e o Poder Judiciário, para defender a democracia, são pagospelo Estado. O advogado é pago pelo seu cliente para defender a cidadania, maspara defender o Estado de Direito faz, como sempre fiz, quando era presidente,ou quando era conselheiro da ordem, presidente de instituições jurídicas e deacademias jurídicas, “pro bono”, porque o patriotismo se exerce por amor àpátria e o Estado de direito se defende por amor à pátria.

Enfim, a morte de um cidadão que a própria Procuradoria Geral da República, em setembro, pediu por causa da sua saúde que não continuasse detido, me sensibilizou, me sensibilizou como advogado, me sensibilizou como cidadão brasileiro, me sensibilizou como pai de família, Se eu tivesse morrido aos 46 anos, com meus 6 filhos pequenos, o que seria da minha mulher para poder tocar sozinha a educação de seis filhos? Isto é algo que nós temos que refletir seriamente. Nós, advogados na defesa da democracia, os membros doMinistério Público, devemos exercer com maior intensidade a defesa dacidadania, e os membros do Poder Judiciário, para mais do que fazer justiça,não fazerem injustiça, como aconteceu nesse caso.

 

Créditos: Ives Gandra para Gazeta do Povo.

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Fonte: TBN


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